Nossa mãe apaga a luz bruxuleante da lamparina a querosene para que possamos dormir. E ralha conosco, quando rimos das nossas brincadeiras ou damos abafados gritos com medo da assombração que, temos certeza, ronda a casa. São assim nossas lindas noites e, até que o sono nos domine, aproveitamos o tempo, que nos parece uma eternidade, num simplesmente fazer nada.
Nas noites chuvosas, nos agarramos com medo do clarão dos relâmpagos que riscam o céu e tapamos os ouvidos aguardando o ribombar dos trovões. Os galhos que roçam os telhados são para nós passos de bruxas (ou de uma mula sem cabeça que vem para nos assombrar). O que nos distrai nesses momentos é o coaxar dos sapos que fazem festas, comemorando a água em abundância, fundamental para eles.
Amanhece o dia. Felizes, observamos atentos a relva molhada, sentindo o cheiro doce da terra lavada e a beleza das pétalas brancas e perfumadas do sabugueiro gigante que forram o chão, emoldurando o pequeno quintal, nosso recanto feliz. Recolhemos as mangas derrubadas pela ventania e nos deliciamos ali mesmo, arrancando com os dentes as cascas que envolvem a saborosa fruta. Nova manhã, sol brilhando, e não nos lembramos mais da tormenta.
Os anos passam.
A pequena casa, agora de tijolos, possui luz elétrica e água encanada. A rua sem asfalto, coberta de areia vermelha, passa ser o palco de nossas brincadeiras: pique-esconde, barra manteiga, Maria sai da lata, pula-corda e tantas outras formas de diversão que inventamos na hora e que nos entretêm até o cair da noite.
Em frente a uma vizinha rua da esquina, a estação de trem que, a cada partida de um comboio, nos dá a noção da hora com os longos apitos das marias-fumaças soltando faíscas pelos grandes narizes. No enorme pátio aos fundos do prédio principal, enormes composições fazem manobras e se abastecem.
Do outro lado da rua, um grande terreno, usado por uma empresa para armazenar os fardos de algodão antes de serem prensados e transportados para as indústrias distantes, é usado por nós como esconderijo nas brincadeiras. Entre as imensas pilhas nos encolhemos, escorregamos do alto e cutucamos as sacas para libertar as sementes das macias e brancas maçãs de algodão. O cheiro delicioso do ouro branco recém-colhido impregna nosso nariz e, misturado à poeira vermelha, nos faz espirrar e rir muito por isso. Às vezes aparece o vigia e nos dá um pega, fazendo-nos correr e, às gargalhadas, procurar outro abrigo.
A juventude chega.
Com ela, outras ambições, outros compromissos, outras histórias, mas o cheiro e o gosto da infância ficaram na lembrança. Agora o cuidado com os cabelos, o cheiro forte do perfume doce, a carícia dos vestidos rodados armados com anáguas rendadas que davam lindas formas à nossa silhueta, os sapatos de salto alto, os ternos para os meninos, o vai-vem na praça, os olhares atentos nos flertes, os bailes abrilhantados por famosas orquestras, os corpos colados rodopiando ao som dos boleros românticos, as cálidas carícias, palavras roucas ao pé do ouvido. Todos os sentidos em ação na vivência de momentos inesquecíveis. Momentos que se transformam em horas, dias, anos e...
A maturidade é inevitável.
A vida adulta na cidade grande nos remete a outras sensações. O barulho do ronco dos motores misturado ao som dos radinhos de pilha dos passageiros do ônibus lotado. A visão embaçada pela espessa fumaça, as mãos procurando apoio para o equilíbrio. O gosto ácido da responsabilidade misturado ao prazer da busca por um lugar ao sol. É assim que as lembranças vão sendo substituídas por outras que nascem agora tendo como cenário um mundo diferente não menos desejado.
Aos poucos, a adaptação. Com ela, outras belezas se incorporam ao cenário da passarela dos sonhos. Agora o trajeto tem outras cores: jardins floridos, bandeiras tremulando no alto dos prédios, cheiro suave das panificadoras, o apito atento do guarda de trânsito, o contato suave dos grossos agasalhos a nos proteger do frio intenso são coisas que fazem parte do cotidiano.
É a vida que pulsa dentro da gente, proporcionando uma existência feliz. Quando se percebe... O outono chegando, não cinza, mas de um verde-esperança, de um azul-céu de paz, um lilás de tranquilidade, um celeiro de energia e alegria de viver. Outros projetos, outros sonhos e o renascimento na busca da vida simples do interior. O retorno, não para a terra natal, mas para a muito charmosa e não menos querida Cidade Azul.
Por que essa escolha? Porque, das muitas fugidas da cidade grande nos feriados e nas férias, é Rio Claro a cidade escolhida: além do aconchego familiar, a tranquilidade e a beleza no seu jeito provinciano de ser. O jardim público com a charretinha levando as crianças para passeios e os carrinhos de pipoca e sorvete me trazem de volta o encanto da infância. A beleza da Floresta Estadual, com as ninféias perenes colorindo o lago, os aguapés lilases enchendo de magia o local.
Os ipês encantando as avenidas e o calor dos amigos que já fazem parte da minha vida influenciaram sobremaneira minha decisão de aqui viver. E o destino quis que a residência tivesse a sacada voltada para o pátio da velha estação de trem. E, para mais além no horizonte, o grande horto florestal faz rescindir o cheiro suave dos eucaliptos e serve de palco para revoadas de pássaros no cair das tardes. Isso sem contar o espetáculo do nascer do sol e de sua irmã lua.
Mas... como nem tudo são flores em qualquer caminhada, minha cidade do coração também já não é a mesma. Cresceu, está com cara de cidade grande. Com lindos espaços de lazer e comércio muito desenvolvido, perdeu um pouco da sua timidez, mas continua aconchegante. Apenas uma coisa me deixa contrariada: o barulho fora do comum a me atormentar dia e noite.
O som do apito do trem que eu adorava na infância agora me incomoda, pois as enormes locomotivas abastecidas com óleo diesel e seus apitos estridentes e longos ofendem meus tímpanos. Estridentes e dispensáveis, uma vez que o trânsito não é tão grande e uma cancela é fechada para evitar acidentes quando o comboio passa. Por causa do barulho infernal, os cães recolhidos da rua e alojados em um espaço perto dos trilhos põem-se a latir nas madrugadas.
Os animais não têm culpa. É louvável a iniciativa da ONG em tirar das ruas os animaizinhos indefesos. Os maquinistas, talvez cumprindo normas, também não são culpados. Mas, sinceramente, o que eu mais gostaria agora é ouvir o som do silêncio para dormir o sono dos justos.
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