quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Conversa no Jardim
Debaixo do caramanchão florido, olhos semicerrados, negras madeixas beijadas pelo vento, a menina parecia dormir. As cores pálidas da madressilva exalavam perfume suave, combinando com a simplicidade dos pequenos buquês mesclados de vermelho e branco.
O silêncio da tarde só era quebrado pelo nhec-nhec do balanço que lhe serve de moldura. Como que a compor esse quadro campestre, seus companheiros vão chegando: uma lagartixa que corre, um beija-flor que se farta de néctar, uma salamandra que se agarra a um tronco, um gatinho ronronando que se espicha no seu colo. Uma libélula traça filigranas no ar, depois assenta-se rapidamente nas águas tranquilas do lago sereno logo à frente.
Em meio a isso tudo, as flores que compõem esse lugar mágico põem-se alerta: algumas abelhas aproximam-se perigosamente, atraídas pelo doce da calda do picolé que a menina distraidamente deixara derretendo, vencida pelo sono. Diligentemente, cuidaram de desviar a atenção das pequenas voadoras, antes que um movimento involuntário da menina provocasse um acidente.
Passado o perigo, as flores voltam a fazer o que mais gostam, neste éden encantado: filosofar. Sim. Qualquer acontecimento era motivo de grandes e acaloradas discussões entre elas, num debate que, às vezes, se estendia até quase o crepúsculo.
O assunto desta manhã fora justamente provocado pela menina. Por que, indagavam elas, a garota insistia em manter os olhos fechados, mesmo frente ao perigo iminente? O girassol, achando-se o máximo, colocou-se como mediador. Afinal, que outra flor teria sua capacidade de acompanhar com o olhar o caminho trilhado pelo deus-sol? E propôs que a discussão abordasse as diversas formas de se comportar dos humanos, com seus diversos “olhares”.
Maria-sem-vergonha, aparecida como sempre, foi a primeira a falar:
— Tenho umas parentes que vicejam em um campinho de futebol. Elas me contam tudo o que acontece com os humanos que frequentam aquele lugar. Digo de cadeira: As pessoas não vão lá só para se divertir e praticar esporte. Muitos deles estão à espera de que alguém os veja. Mas não é um alguém qualquer. Chamam a ele “olheiro”, uma pessoa que vive de caçar talentos. Os jogadores esperam uma oportunidade de ser convidado para treinar em grande time e, para isso, não perdem a oportunidade de se exibir, mostrado seus conhecimentos de futebol. Os olheiros funcionam como uma espécie de instituição, que capta talentos esportivos em todo o mundo.
A ninféia quase não deixa a colega terminar. Emendou:
— Você falou em olheiro e me fez lembrar. Vivo na água, vocês sabem. Em um lago, é bem verdade. Mas sei tudo sobre o mar. Certa vez, estava um grupo de pescadores conversando e um deles contou sobre a pesca artesanal de tainhas, iniciada pelos colonizadores açorianos lá pelos idos de 1692, quando chegaram à ilha. E sobre o trabalho de “olheiros” também. Por isso me lembrei.
E continuou: — Por volta das quatro da manhã, esses homens sobem aos costões do mar para espreitar a chegada dos peixes e informar aos pescadores que aguardam na praia a exata localização dos cardumes e a hora certa para iniciar a pesca.
— Pois eu vejo o olhar por outro ângulo.
Todas as demais flores calaram-se. Era a espada de são jorge, com suas voz tonitruante, porte militar, postura ereta, fardas engomadas, a impor o respeito de todas. Aproveitou o silêncio que se fez para continuar:
— O assunto faz-me lembrar os filmes da idade média, assunto da conversa de dois jovens neste mesmo balanço em que descansa a garotinha. Diziam eles que os comandantes das armadas dos grandes castelos medievais colocavam sentinelas ao redor de toda a muralha.
— E é do olhar atento daqueles soldados que dependia toda a segurança do castelo, completou a espada de são jorge.
O girassol, do alto de sua magistratura, a tudo acompanhava, com ar de superioridade, fingindo a tudo entender, para disfarçar a sonolência que tanta informação produzia.
No pequeno vácuo que se fez, a camélia criou coragem. Mesmo sem querer se exibir, disse:
— Nós, camélias, somo o símbolo dos abolicionistas. Servíamos de senha para identificar os cavalheiros abolicionistas e, com isso, ajudar os negros fujões.
— Mas o que isso tem a ver?, apartou o mal-me-quer, com o humor ácido que lhe é peculiar.
— Você não sabe? O olhar atento dos escravos buscava jardins das casas onde houvesse um pé de camélia, sinal de compromisso com a causa.
A orquídea, com as pétalas ainda respingadas pelo orvalho que o sol não secara, ouvia em silêncio. Achava tudo aquilo interessante, mas entendia que era hora de mudar o rumo da prosa, como costumava dizer. Ela, que já havia sido palco de inúmeras experiências de cruza, dizia-se esperta em assuntos visuais. E, querendo imprimir um ar mais científico à conversa, iniciou seu discurso:
— O olho é o dispositivo mais engenhoso da natureza. Em princípio poderíamos compará-lo a uma câmara fotográfica. A objetiva da câmara equivale à córnea, as pálpebras encarregam-se de mantê-la limpa, clara e livre de tudo que possa turvá-la. Ambos os olhos se movimentam coordenadamente para que possam seguir o objeto observado. Apesar de sua importância, nem todos têm o cuidado devido com seus olhos e não valorizam o sentido da visão em toda sua magnitude.
O girassol, agora já meio cansado, dizia, com a voz a trair um certo enfado:
— O próximo, por favor.
A rosa, que esperava silenciosa e pacientemente sua vez, naquela manhã estava especialmente mais linda ainda, deslumbrante mesmo. Com toda sua ternura mística, propôs-se a falar do olhar sob um novo enfoque: o olho na simbologia. E começou:
— O olho, órgão da percepção visual, é reconhecido quase que universalmente como o símbolo da percepção intelectual. É assim que temos, sucessivamente, o olho físico na sua função de recepção da luz; o olho frontal, o terceiro olho, e, finalmente, o olho do coração. Todos os três recebem luz espiritual. Na filosofia, o olho também denota visão, maneira de ver.
Silenciosa, a doce violeta, exalando seu suave perfume, se desvencilha das folhas que a protegem e também a escondem e enfatiza, serena:
— Bem-aventurados os vossos olhos, porque veem,... *
— Refletir sobre nosso modo de ver, eis a questão. E continuou, com a humildade que lhe é peculiar:
— Olhos... patrimônio de todos. Encontramos, porém, olhos diferentes em todos os lugares. É preciso estar atento e forte para discernir, pois, segundo asseverou o apóstolo Paulo de Tarso, “Tudo me é lícito, nem tudo me convém”. É preciso critério, equilíbrio e, principalmente, atenção em nosso caminhar pela vida, para não sermos surpreendidos por situações perigosas, consequência de um olhar desatento.
Antes que o girassol desse por terminada a reunião – estava louco para isso –, a natureza veio a seu favor e o ajudou a encerrar o assunto, mesmo que outras flores estivessem doidas para falar.
Uma rajada de vento frio despertou a garota que, esfregando os olhos, espantou as abelhas. Ainda sonolenta, enquanto espreguiçava, veio-lhe a nítida impressão de que sonhara. Esforçou-se por lembrar e, passando a mão pela testa, achou engraçado quando lembrou-se de alguém que lhe falara sobre o “terceiro olho”, localizado no ponto entre as sobrancelhas, que, segundo a tradição hinduísta, está ligado à capacidade intuitiva e à percepção sutil.
Nisso, uma abelha retornou. Ela, agora atenta, intuitivamente a espantou e acabou por se lembrar do sonho (embora não dos personagens). Nele, lembrava-se agora, havia sido enfatizada a atenção ao modo de ver e perceber as coisas. Recordou-se de seu grupo de amigos escoteiros, cujo lema no mundo inteiro é: SEMPRE ALERTA.
E... já que havia despertado, aproveitou para percorrer com mais atenção o jardim, observando a beleza de cada flor. Instintivamente, começou dialogar com elas, como que agradecendo a oportunidade do aprendizado.
Texto de Geni D.Bizzo
* Matheus. 13,9... 17
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