quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Theo
Ondas gigantescas batem na parede transparente e, ao descerem, compõem uma forte correnteza em direção ao gargalo da enorme cratera, por onde se escoam as águas.
Observo entre assustado e curioso o lindo espetáculo. Folhas enormes da renda portuguesa se contorcem, varrendo o chão encharcado. Aves, acostumadas como eu a alçar pequenos vôos, cruzam os espaços macios da “enorrrrrrrme...” residência. Neste momento, me imagino planando por sobre as árvores, sentido o frescor agradável da atmosfera lavada pela chuva torrencial. Mas não posso ir além. Embora seja livre num espaço relativamente grande, minha liberdade é limitada. Não tenho condições de sobrevôo e não mais conseguiria viver sem a proteção dos humanos.
Lembro-me de que sou uma ave da família das calopsitas. Meu nome é THEO. Sinto-me um pequeno humano, dividindo espaço com uma companheira que, humana, sente-se uma enorme calopsita. Nossa história é bonita. Cheguei nesta casa num momento difícil e de muita tristeza. Fui trazido como presente por um parente dela, para ser seu companheiro divertido e leal. E cumpro meu papel. Entendemo-nos muito bem. Às vezes até pelo olhar. Nossas vidas são tão semelhantes que até nos confundimos.
Meus antepassados são da Austrália. Nossa migração só começou a acontecer em meados do século XIX. Foi quando os antepassados de minha companheira também partiram em busca de novas terras. Foi nessa mesma época – um pouco depois, talvez – que tomaram o navio na Itália rumo a este país maravilhoso em busca de dias melhores.
E as semelhanças não param por aí.
Somos divertidos, leais, inteligentes, nos adaptamos muito bem às situações adversas; sentimos fome, medo, frio, alegria, dor, tristeza, aceitação, rejeição.
Eu, como não conheço a vida lá fora, me sinto um “lorde de plumas”. Sou bonito, com penas coloridas e a cara vermelha, parecendo maquiadas com cuidado. Vivo numa gaiola aberta, colocada bem no alto de uma escadinha, que uso como academia, num sobe e desce constante. Tenho total liberdade para ir e vir na residência. Adoro ser tocado, acariciado, mas só quando me sinto confiante. Retribuo da mesma forma. Sou dócil e afetuoso, aprendo com facilidade as músicas que me ensinam.
Ela, ah... Ela também. É alegre, divertida, elegante, gosta de cantar, é sonhadora. E, como eu, embora se diga livre, não o é verdadeiramente. Vive prisioneira dos medos, tensões, aflições de como conduzir a vida. Tem medo do que possa lhe acontecer, embora se afirme com muita fé e a tem, às vezes fraqueja e se torna prisioneira de preconceitos, de ansiedades, de julgamentos.
Quando pode “voar” com seu anjo de pés de borrachas, o faz de maneira tacanha, com os vidros fechados e embaçados, sentindo a cada passo o pavor de alguma aproximação. Angustia-se, tem medo de não dar conta do recado quando a dor ou a necessidade se aproximarem. Como enxergar a vida diante da escravidão materializada na presença do medo, configurando a vida super-avaliada nas necessidades criadas pela ansiedade?
Se eu pudesse verbalizar, diria:* “Olhai as aves do céu, que nem semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai Celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas?”
Qual a diferença entre as necessidades do Homem e das aves? Está em uma palavra: Consciência. É ela que dá ao homem a dimensão do tempo e do espaço, das suas necessidades, de sua finitude. Isso não acontece com nenhum outro ser, nem mesmo aves, como eu.
Claro, sei que as necessidades dos humanos são maiores que as nossas. Como sei que necessidades geram ansiedades, medos, que os aprisionam cada vez mais. Mas, mesmo assim, procuro transmitir com meu olhar o que penso: confie, seja firme e forte para que, depois da “chuva” de preocupações e de problemas, a “atmosfera da alma” esteja lavada e protegida com o conforto que Deus nos concede.
Continuo observando a chuva, enquanto ela dorme recostada no sofá. Talvez sonhe livre e, voando nas asas livres de um sonho, tenha a consciência do que nos diz o filósofo Sêneca “A vida é feliz”, E sem ansiedades e preocupações, sua vida irradiará alegria, tranquilidade e bem-estar perenes.
E que ela, finalmente, possa perceber que às vezes precisamos dar uma pausa nas nossas angústias para despreocupadamente vivermos o que é simples, como a vida das aves.
Texto e foto de Geni D. Bizzo
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Um comentário:
Gente! O que é isso, adorei.
Essas coisas que deveriam aparecer na televisão. Tenho 61 anos e moro em Ibitinga, pena que aqui não temos nada como isso, eu gostaria de participar.
Selma Znfelice
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