Eu me lembro da dor doída e do gosto amargo da decepção, quando um tsunami entrou Rua Carlos Gomes adentro, atingindo a praça arrastando tudo. Os balões de gás coloridos se enroscavam nas altas árvores frondosas. As bandeirolas verde-amarelas arrancadas das mãos das crianças voavam, e todos os sonhos guardados para esse dia em especial foram-se desmanchando. Era assim que me sentia naquele dia fatídico.
Eu me lembro...
Praça Rui Barbosa apinhada de gente naquela linda manhã de setembro. O sol saía das entranhas da terra com seu brilho morno, prenunciando a primavera e ressaltando ainda mais o colorido das crianças que pulavam ao redor do coreto enquanto aguardavam a festa. Vendedores de uniforme e boné se esmeravam para atender os pequerruchos. Balões de gás, bandeirolas do Brasil, é claro, algodão-doce, sorvete, pipoca, pé de moleque. Os pais atendiam como podiam, mas com muito gosto, por participarem de um evento raro na provinciana cidade.
De uniforme azul e branco, sapatos pretos e meias soquete, gravata preta, cabelo arrumado, leve maquiagem e um vazio no estômago provocado pelo longo jejum que se misturava à ansiedade, eu, toda faceira, aguardava feliz o início do cortejo.
Minhas colegas de turma e eu havíamos formado, como abelhas operosas, o pelotão de frente, na rua defronte ao colégio. Daí faríamos o trajeto pela rua Carlos Gomes, contornaríamos a praça se seguiríamos no desfile cívico da Independência. Nós, normalistas, estávamos orgulhosas: era nossa a honra de seguir os lindos jovens do Tiro de Guerra que conduziam o Pavilhão Nacional. Na formação privilegiada podíamos observar tudo e trocar olhares, já prenunciando o encontro para o final do compromisso. O tempo se arrastava e uma longa espera já nos preparava para um desfecho cruciante.
Estranhando a demora, enquanto aguardávamos o início cochichávamos, tentando entender o que estava acontecendo. Não podíamos sair da formação: a disciplina era rigorosa, e tudo que não queríamos naquele momento era que alguém nos chamasse a atenção na frente dos pracinhas.
O suor escorria e o penteado já se desmantelava quando, finalmente, veio a triste notícia... Silêncio cósmico. Espanto, um misto de tristeza e angústia tomava conta da multidão. A voz empastada do diretor anunciava o fim do desfile que não começara. Acabávamos de perder, em um trágico acidente, monsenhor Victor Ribeiro Mazzei, nosso pastor de almas durante muitos anos e que agora retornava à cidade para os festejos da Independência. Era, sobretudo um cidadão araçatubense amado por todos, católicos ou não. Não haveria desfile, não haveria festa, não haveria sorvete de coco queimado, não haveria encontros furtivos, não haveria aquele encontro sonhado. Somente dor e desolação.
Eu me lembro...
Dispersamo-nos e nos dirigimos à praça. Ao invés da algazarra da criançada feliz, somente o soar melancólico do enorme sino da Igreja Matriz que se preparava para a cerimônia fúnebre. Minha cabeça girava num misto de fraqueza, dor e revolta.
Eu me lembro da sensação terrível do grito de dor na garganta e hoje tenho a certeza de ter vivido horas no meio de um tsunami. Minha dor maior era de frustração. No meu mundinho interior, bem lá dentro, sentia por não sentir a mesma tristeza de todo mundo. A dor doída era particular, só minha.
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